O primeiro astronauta



O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhamposse

Só ele teria sacudido os pés à entrada da Lua
Só ele
teria pedido

com suave delicadeza:
- dá licença?

Mia Couto

E nós não dizemos nada...


Na primeira noite eles se aproximaram
e colheram uma flor do nosso jardim
E nós não dissemos nada

Na segunda noite, já não se escondem
Pisam as flores, matam o nosso cão
E nós não dizemos nada

Até que um dia, o mais frágil deles entra
sozinho em nossa casa
rouba-nos a lua
e conhecendo o nosso medo
arranca-nos a voz da garganta

E porque não dissemos nada
Já nada podemos dizer


anónimo - afixado na Escola de Lamaçães

Vamos ouvir a vida




Vamos ouvir a vida
Nos silêncios da tua voz
Terra minha prometida
Rio no fim, rio na foz

Marcas do Presente








Figueira da Foz - Serra da Boa Viagem
Fotos MP

Marcas do passado



Pégada de Tiranossauro Rex









Figueira da Foz - Serra da Boa Viagem
Fósseis de amonites
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Fotos MP

Lua e Vénus

irmãs de Viagem







Lágrima de Luz










Fotografia - MP


Deus é assunto delicado de pensar, faz
conta um ovo: se apertarmos com força
parte-se, se não seguramos bem cai.


(Dito do avô Celestiario, reinventando
um velho provérbio rnacua)


Mia Couto - Mar me quer

Sou pedra do mar
Que um dia foi cristal
Brilhante e transparente
Límpido como o luar

Hoje sou pedra bruta
Que um dia o mar irá polir
E então…voltarei a brilhar
Para ti

Sou pedra do mar
Cristal agora tosco
Amanhã grão de areia
Na duna do renascer

Mário Pinhal


O VELHO E O RICO

Conto de Jorge Bucay retirado do Livro "deixa-me que te conte - Os contos que me ensinaram a viver

Era uma vez, nos arredores de uma pequena aldeia, duas casas vizinhas. Numa vivia um afortunado e rico agricultor. Estava rodeado de criados e tinha acesso a tudo o que se pudesse imaginar.
Na outra, um casebre humilde, vivia um velhinho de hábitos muitos austeros, que dedicava grande parte do seu tempo a trabalhar a terra e a rezar.
O velho e o rico cruzavam-se diariamente e trocavam algumas palavras em cada encontro. O rico falava do seu dinheiro e o velho falava da sua fé.
- A fé! - troçava o rico. Se, como dizes, o teu Deus é assim tão poderoso, porque é que não lhe pedes para te enviar o suficiente para não passares as privações que passas?
- Tens razão - disse o velho. E enfiou-se em casa.
No dia seguinte, quando se encontraram, o velho tinha a felicidade estampada no rosto.
- Que se passa, velho?
- Nada. Mas segui o teu conselho e pedi a Deus, hoje de manhã, para me enviar cem moedas de ouro.
- Ah, sim?
- Sim. Disse-lhe que, como tenho sido boa pessoa e respeitado as Suas leis, merecia um prémio e que queria as moedas. Parece-te uma quantia excessiva?
- Não importa a minha opinião disse o rico, trocista. - O que importa é que ao teu Deus não pareça excessiva. Talvez Ele ache que mereces um prémio de vinte moedas, ou de cinquenta, ou de oitenta, ou de noventa e duas. Quem sabe?
- Ah, não. Deus pode decidir se eu mereço o prémio ou não, mas o meu pedido foi muito claro. Quero cera moedas. Não aceitarei vinte, nem trinta, nem noventa e duas. Pedi cem e não tenho dúvidas de que, se o meu bom Deus puder responder ao meu pedido, o fará. Ele não vai regatear comigo, nem eu com Ele. Cem é o pedido e cem me enviará. Não penso aceitar nem uma moeda a menos.
- Livra, estou a ver que és exigente! - disse o homem rico.
- Assim como Ele me exige, também eu exigirei d'Ele respondeu o velho.
- Não me pareces capaz de rejeitar as vinte ou trinta moedas que te mande o teu Deus, só por não serem cem.
- Pois recusarei qualquer quantia inferior a cem. No entanto, se Deus achar que é pouco e decidir mandar-me mais, também não aceitarei o resto.
- Ha, ha! Estás completamente louco e queres fazer-me acreditar nessa história da tua fé e da tua determinação! Ha, ha! Gostava de te ver manter a tua palavra. Ha, ha!
E cada um regressou a sua casa.
O rico não sabia explicar porquê, mas o velho deixava-o nervoso. Que lata! Como é que ele podia dizer que não aceitaria menos de cem moedas de ouro? Tinha que desmascará-lo e ia fazê-lo nessa mesma tarde.
Preparou um saco com noventa e nove moedas de ouro e foi a casa do vizinho. O velho estava de joelhos, a rezar.
- Querido Deus, ajuda-me nas minhas necessidades. Julgo que tenho direito a essas moedas. Mas lembra-te: são cem moedas. Não me conformarei com o que me enviares. Quero exactamente cem moedas...
Enquanto o velho rezava, o rico subiu ao telhado e atirou as moedas pelo buraco da chaminé. Depois, desceu e foi espiar.
O velho continuava ajoelhado quando ouviu o tilintar metálico pela chaminé abaixo. Lentamente, levantou-se, aproximou-se da chaminé, pegou no saco e sacudiu o pó e as cinzas.
A seguir, dirigiu-se para a mesa e esvaziou o conteúdo do saco em cima do tampo. A montanha de moedas materializou-se diante dos seus olhos. O velho caiu de joelhos e agradeceu ao bom Deus a prenda que lhe enviara.
Terminada a prece, contou as moedas. Eram noventa e nove! Eram noventa e nove moedas.
O homem rico continuava à espera, preparado para comprovar a sua teoria. O velho levantou a voz para o céu e disse:
- Deus meu: vejo que a tua decisão foi cumprir o desejo deste pobre velho, mas vejo também que os cofres do céu só tinham noventa e nove moedas. Não quiseste fazer-me esperar por apenas uma moeda. No entanto, como te disse, não quero aceitar nem uma moeda a mais nem uma a menos de cem...
«és um imbecil», pensou o rico.
- ... Por outro lado - prosseguiu o velho -, tenho total confiança em Ti. Portanto, e só desta vez, vou deixar-te escolher à vontade o momento em que me enviarás a moeda que me deves.
- Traição! - gritou o rico. - Hipócrita!
E, aos gritos, desatou a bater na porta do seu vizinho.
- És um hipócrita! - continuou a berrar. - Disseste que não ias aceitar menos de cem e já estás a meter essas noventa e nove moedas ao bolso, como se nada fosse. Tu e a tua fé em Deus não passam de uma mentira.
- Como sabes das noventa e nove moedas? - perguntou o velho.
- Sei porque fui eu que te mandei essas noventa e nove moedas, para te provar que és um charlatão. «Não aceitarei menos de cem.» Ha, ha, ha!
- E, de facto, não aceitarei. Deus há-de enviar-me a última moeda quando quiser.
- Ele não te vai enviar nada, porque fui eu quem mandou essas moedas, como já te disse.
- Não vou discutir se foste tu o instrumento que Deus utilizou para satisfazer o meu desejo ou não. Mas a verdade é que este dinheiro caiu pela minha chaminé enquanto eu o pedia e, portanto, é meu.
O homem rico trocou o sorriso por uma carranca.
- Como, é teu? Esse saco e essas moedas são meus. Fui eu que os enviei.
- Os desígnios de Deus são incompreensíveis para o ser humano - disse o velho.
- Maldito sejas e maldito seja o teu Deus. Devolve-me o dinheiro ou levo-te ao juiz e vais acabar por perder também o pouco que tens.
- O meu único juiz é o meu Deus. Mas se te referes ao juiz da aldeia, não tenho problema nenhum em expor-lhe o caso.
- Está bem, então vamos.
Vais ter de esperar que eu compre uma carroça. Ainda não tenho uma e um velho como eu não se pode dar ao luxo de ir a pé até à aldeia.
- Não precisas de esperar. Ofereço-te a minha carruagem.
- Agradeço a tua oferta. Nestes anos todos, nunca me ajudaste em nada. Bom. Seja como for, devemos esperar que passe o Inverno. Faz muito frio e a minha saúde não aguenta uma viagem à aldeia sem um bom casaco.
- Estás a tentar empatar - disse o rico, furioso. - Dou-te o meu próprio casaco de pele, para que possas viajar. Tens mais alguma desculpa?
- Nesse caso - disse o velho -, não me posso negar a ir.
O velho vestiu as peles, subiu para a carruagem e partiu rumo à aldeia, seguido pelo homem rico, que ia noutro transporte.
Chegados à povoação, o homem rico apressou-se a pedir audiência ao juiz e, quando este os recebeu, contou-lhe em pormenor o seu plano para desacreditar a fé do velho, que lhe tinha enviado as moedas pelo buraco da chaminé e que o velho, depois, se recusara a devolvê-las.
- Que tens a dizer, velho? - perguntou o juiz.
- Senhor juiz: espanta-me ter de vir aqui confrontar o meu vizinho por causa deste assunto. Este homem é o mais rico da cidade. Nunca foi solidário, nunca teve um gesto de caridade para com os demais e não me parece necessário eu argumentar em minha defesa. Quem poderia acreditar que um homem avaro como este tenha sido capaz de pôr quase cem moedas num saco e atirá-las pela chaminé do vizinho? Parece-me claro que o pobre homem andava a espiar-me e, ao ver o meu dinheiro, inventou esta história, motivado pela cobiça.
- Inventar? Seu velho maldito! - gritou o rico. - Tu sabes que é verdade o que eu disse. Nem tu acreditas nessa patranha de Deus te ter enviado as moedas. Devolve-me o saco.
- É evidente, senhor juiz, que este homem está profundamente perturbado.
- Claro que estou! Fui roubado! Exijo que me devolvas o saco.
O juiz estava estupefacto. Os argumentos de ambos obrigavam-no a tomar uma decisão, mas qual seria a mais justa?
- Devolve-me o dinheiro, seu velho mentiroso - dizia o rico. - Esse dinheiro é meu e só meu.
De repente, o rico transpôs a barreira de madeira que os separava e, fora de si, tentou arrancar o saco das mãos do velho.
- Ordem! - gritou o juiz. - Ordem!
- Está a ver, senhor juiz? A cobiça deixou-o louco. Não me admirava nada que, se conseguisse o saco, depois começasse a dizer que a carruagem em que vim também é dele.
- E é minha! - apressou-se a dizer o rico. - Emprestei-ta. - Está a ver, senhor juiz? Só falta dizer que também é dono do meu casaco.
- Mas eu sou dono desse casaco! - gritou o rico, descontrolado. - É meu, é tudo meu: o saco, o dinheiro, a carroça, o casaco... É tudo meu! Tudo!
- Alto! - ordenou o juiz, que já não tinha qualquer dúvida. - Não tens vergonha de querer roubar a este pobre velho o pouco que tem?
- Mas... mas...
- Nem mas, nem meio mas. Estás cheio de ganância e cobiça - continuou o juiz. - Por teres tentado roubar este pobre velho, condeno-te a uma semana de prisão e terás de pagar ao teu vizinho uma indemnização de quinhentas moedas de ouro.
- Desculpe, senhor juiz - disse o velho. - Posso falar?
- Podes, velho.
- Penso que o homem já aprendeu a lição. Peço-lhe que, apesar de ele ser meu adversário, o senhor o liberte da pena e lhe imponha uma multa simbólica.
- És muito generoso, velho. Que propões? Cem moedas? Cinquenta?
- Não, senhor juiz. Penso que o pagamento de uma só moeda será castigo suficiente.
O juiz bateu com o martelo na mesa e sentenciou:
- Graças à generosidade deste homem, e não por desejo do Tribunal, impõe-se ao réu uma multa simbólica de uma moeda de ouro, que deverá ser paga imediatamente.
- Protesto! - disse o rico. - Protesto!
- A menos que o condenado rejeite a gentil proposta deste bom homem e prefira a sentença menos benévola deste tribunal.
O homem rico, resignado, sacou de uma moeda e entregou-a ao velho.
- Assunto encerrado - disse o juiz.
O rico saiu desenfreado na sua carruagem e foi-se embora da aldeia. O juiz cumprimentou o velho e retirou-se. O velho levantou os olhos para o céu.
- Obrigado, Deus. Agora sim. Não me deves nada.


De mãos calejadas
Dos suores que as molharam
De mágoas arranhadas
Brotaram rosas
Minhas Flores

Fotografia - MP