1 comentário:

Anónimo disse...

Mais um contributo com um artigo...

Agora nós
04.03.2008, Helena Matos (Jornalista)
Os governos em Portugal estão reféns de um aparelho de Estado cuja voragem de recursos é enorme

"Não teremos mais um canal de novelas" - declara o ministro Santos Silva, a propósito do novo canal de televisão. "A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) "aconselhou" a centenária fábrica das amêndoas de Portalegre a encerrar as portas, por falta de espaço." "Lista de devedores ao fisco publicada na Internet"... Compare-se esta forma de falar e mandar com as vaguíssimas e titubeantes declarações do ministro da Administração Interna ou da Justiça sobre a actual crise da justiça e segurança interna e fica-se chocado com o contraste.
O exercício do poder que tradicionalmente associávamos à Justiça, à Administração Interna ou aos Negócios Estrangeiros ou está envolvido numa descredibilização assustadora - como acontece com as duas primeiras pastas - ou, como ocorre com a diplomacia, é cada vez mais apresentado como matéria resolvida algures em Bruxelas ou atirada para um canto, por receio de que as opiniões públicas percebam que a realidade não é tão cor-de-rosa quanto lhe dizem. Ninguém quer discutir o Tratado de Lisboa, a presença militar no Afeganistão ou os voos da CIA.
Incapazes e também não interessados em reformar o Estado, os partidos vão assim deslocando a sua acção do país para os indivíduos. O que lhes sobra somos nós. Não por acaso, o nosso Governo legisla com vigor sobre o teor das gorduras, apela a que chamemos a GNR para que esta averigue se num determinado local alguém está a fumar, publica as listas de devedores ao fisco, decide o que devemos ouvir na rádio e ver na televisão, manda fechar empresas porque as instalações e os bens aí produzidos podem ser do agrado dos clientes mas não obedecem àquilo que uns regulamentos quaisquer determinam. Se for necessário, até se reactiva mais uma questão fracturante daquelas que tocam naquilo que nos é mais pessoal e intransmissível, como a morte ou o sexo, para que os partidos possam mostrar que algo ainda os distingue.•
Mas o nosso Governo, que tão lestamente nos diz o que devemos comer, comprar e até pensar, o mesmo Governo que se prepara para nos entrar nas casas - não se prepara o ministro do Ambiente para colocar um chip no caixote do lixo? - e que pretende transformar os advogados e os contabilistas em colaboradores das polícias, este Governo, tal como aqueles que o antecederam e provavelmente como aquele que lhe vai suceder, perde toda a capacidade quando, em vez dos cidadãos, se confronta com a sua própria máquina. Os governos em Portugal estão reféns de um aparelho de Estado cuja voragem de recursos é enorme. Mas também só ganham eleições prometendo mais serviços e mais benefícios desse mesmo Estado. E assim chegámos à paradoxal situação dos ministérios serem falados não por aquilo que fazem mas sim, e sobretudo, pelos seus problemas de funcionamento.
Pensemos no ex libris disto tudo: a Educação. A tal que suscitou paixões e investimentos que nada ficam atrás dos que são feitos em países ricos. O resultado está aí, num Ministério da Educação que deveria antes chamar-se Ministério de Gestão dos Professores, Auxiliares, Pedagogos e Demais Técnicos. Porque é isso que ele é. Os ministros da Educação não são contestados ou apoiados por aquilo que fazem ou não fazem em matéria de educação, mas sim por aquilo que resolvem sobre as carreiras, os estatutos e os vencimentos dos seus funcionários. Qualquer titular da pasta da Educação desde há muito que deixou de ter a educação como a sua preocupação. Quando é que pela última vez se ouviu um ministro em Portugal a debater conteúdos? Maria de Lurdes Rodrigues nunca, até hoje, falou sobre a trapalhada da TLEBS. Nunca explicou para que servem muitas das novas disciplinas como a Área de Projecto. Muito menos ela e quem a tem precedido na 5 de Outubro se pronunciam sobre o que, de facto, se ensina ou avalia. O que quer dizer um ministro da Educação quando declara que o sucesso escolar está a aumentar: que os resultados são efectivamente melhores ou que, muito prosaicamente, hoje se considera aprovado um aluno que há alguns anos se reprovava? Não há tempo nem espaço para discutir nada disso. O que conta é que o aparelho resista a mais esta tentativa de o meterem na ordem. E provavelmente vai ganhar mais uma vez.
Esses sindicatos dirigidos há anos pelas mesmas pessoas, mais essas associações de pais que não só não se sabe quantos pais representam como menos se percebe ainda há quanto tempo andam nessas funções, esses secretários de Estado com uns currículos de pura burocracia podem estar momentaneamente separados mas fazem parte todos desse aparelho que se alimenta da obrigatoriedade das famílias portuguesas de colocarem os seus filhos na escola pública. Se o Estado português ousar entregar à escola pública ou privada escolhida por cada família aquilo que custa o mesmo aluno actualmente na escola pública que lhe está destinada, certamente que discutiríamos muito menos as questões de funcionamento do ministério e passaríamos a ter inúmeras razões para debater educação. Quem sabe até poderíamos ouvir os ministros da Educação a falar de educação, ensino, exames...•
Mas não só isso não acontecerá, como qualquer tentativa de reforma dos serviços estatais - seja ela boa ou má - acabará a arrastar-se pelos tribunais. A judicialização da vida política é um dos lados mais perversos da desvalorização dos políticos e da política. Fechar uma urgência hospitalar ou alterar modos de funcionamento de uma escola podem ser boas ou más decisões. Mas trata-se de política. Não de justiça. Não existe uma forma mais justa ou injusta de tratar o Serviço Nacional de Saúde. Existem opções políticas. Que prefiramos acreditar que tudo isto é uma questão de justiça e legalidade é revelador da actual vacuidade do discurso político.
Entre uma máquina estatal da qual dependem para ser poder e que não podem nem conseguem reformar e um país para o qual não apresentam um discurso ideológico mas sim de estilo, os dirigentes políticos deslocaram para os cidadãos, para os seus comportamentos, para as suas atitudes, o campo onde traçam aquilo que supostamente os distingue. Era mesmo o que nos faltava.


Cláudia